Quando voltava do trabalho e tirava os sapatos de couro Datelli, Papai tinha um chulé específico. Ele tirava os sapatos de couro para se sentar numa cadeira de assistir o jornal da noite, a cadeira de madeira vermelha envernizada com encosto vazado num desenho curvilíneo. A cadeira parecia se assentar sobre as costas de um elefante, imponente e desconfortável. As crianças, nunca sentávamos naquela cadeira, só no sofá. O desconforto impunha uma postura austera ao pai de camisa social e calça jeans; dele, só se liberavam os pés. A liberdade exalava o cheiro do chulé do meu pai.
P. tinha medo dos boizinhos, já K. não se importava, enfiava as mãos nas tetas das vacas para tirar o leite. o vô Rudi não gostava da terra vermelha
passava o dia na rede
eu queria passar o dia na rede
não ter que organizar horários
trabalhar
comer
foder
não ter que ir
você
você viria até mim
eu via o pinto do meu pai
assim como os seios e os pentelhos da minha mãe
agora velho
já não troca mais de roupa
na minha frente
havia tanto desejo no quarto dos pais
a astróloga viu desejo no mapa
no quarto de visitas meu pai
dorme viúvo
numa cama de solteiro
"Charco, meus pés enlameados" foi publicado na "Antologia Bidê / Bidê Coletivo" (selo Hecatombe/Urutau, 2023)
Priscila Kerche (Cuiabá-MT, 1989) é filha do Marcílio e neta do Rudi. Mora em São Paulo há mais de dez anos, onde trabalha como repórter na Tv Brasil. Publicou poemas na plaquete Ira (Primata, 2022) e na coletânea Corpo: animal em extinção (Urutau, 2023). Tem um conto, como aluna do Clipe, em Casa Palavra (Penalux, 2022). Vai publicar seu livro de poemas de estreia Tuia pela Laranja Original.
@priscilakerche